“Parla!”
era a fala que aquele escultor guardava para a escultura que escolheu libertar
do mármore. Tornou-se sua doída obsessão, a ponto de transformar todas as suas
vivências em meros degraus para sua criação. Fiel à musa que inspirava a si
mesma, não admitia qualquer questionamento ou interferência em sua relação. Os
primeiros quatro anos foram os mais complicados, pois as pessoas insistiam em
querer vê-lo, interná-lo à força, ou tirá-lo do ateliê, mas desistiram pelos indescritíveis
acessos de fúria do artista.
Enlouquecia
também por ódio às necessidades vitais, que teimavam em pará-lo, como a
obrigação de comer e dormir, por exemplo. Um dia, no entanto, simplesmente
parou por completo de ingerir alimento ou ceder ao sono. Não era mais
necessário, pois a poeira da pedra o alimentava e trabalhava por todas as
horas, pois também era sonâmbulo. Somente a necessidade de beber água se
manteve, mas ele se satisfazia com a que usava para umedecer a escultura
escondida dentro do mármore.
Quando
completaram-se exatos doze anos, finalmente pôde enxergar com alguma nitidez a musa/obra
que por tanto tempo fugira dele. As lágrimas do artista escorriam sem qualquer
controle, mas não eram alegres ou tristes: eram desesperadas, pois temia perder
sua amada, agora que estava liberta. Mas ao tomar fôlego para convidá-la a
dizer o que por tantos anos calou, percebeu que ainda não era a bela criatura -
que de fato era – pois o ombro esquerdo da escultura ainda não era a que lhe
pertencia.
Com
infinito amor – e aqui me refiro a amor de verdade, não esse que se vê em
filmes, histórias ou na vida – tocava a obra a fim de fazer com que ela pudesse
“tornar-se o que era”. Porém, em um milésimo de segundo, tão invisível quanto a
dor, viu a metade de sua bela ruindo em suas próprias mãos, sobrando-lhe apenas
o busto. Enlouquecido, saiu andando pelas estradas sem nunca mais parar, sempre
carregando consigo as partes quebradas. Para trás, ficou o busto, esquecido e
abandonado para sempre, pois ele nunca mais voltou e ninguém ousava se
aproximar daquele lugar.
Mas
a verdade é que o escultor nunca soube que a verdadeira musa/obra era
exatamente aquela e que chegou a tê-la em suas próprias mãos: sua amada sempre
fora apenas parte e não todo o dorso que ele pensava. Morreu como louco e indigente,
sem nunca ter ficado sabendo que seu grande amor nunca deixou de esperá-lo,
liberta que fora por ele e pronta a falar.
(História dedicada ao amigo
Marco Paulo, pela preciosa e querida inspiração)