quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Atriz Travestida de Poeta

Quando me penso resolvida em atriz
Pago pelo meu desdém por palavras.
Ansiando pelo despejo da cicatriz,
Deparo-me com o silêncio dos dedos.

O culpado és tu, caríssimo sentir!
Enquanto lágrimas embriagam a razão,
A felicidade ensurdece o bom senso.
Por que, então, não explica a que veio?

Se ao menos sussurrasse pistas sobre nós,
Em par, falaríamos o que somos em corpo.
Mas se esconde em sonhos, e (na) mente:
Chego a não saber o (por) quê (quem) sou.

Afinal, como é possível que tu possas ser,
tendo embalagem inodora, disforme, incolor?
Se não se explica, como podes fazer doer,
Inclusive quando sou intenso e inteiro riso?

Quero transmutá-lo em realíssimo tema,
Porém, não se mostra tal qual vidro à arte,
Seja no canto, palco, bar, vídeo ou poema.
Peço, apenas respondas: crias ou és criado?

Perdoa-me, não digas: fui deveras vulgar.
Se algum dia achar que sei como te chamar,
Será porque desisti e me entreguei ao iludir.
Assim, tola, serei uma crente que sabe de si.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Enter no Meio


não sei ou lembro quando
me apaixonei assim,
de quatro,
pois já nasci sabendo:
existir só
é possível
se você meter em mim.

mas nunca tivestes dó.
estuprou-me sem tocar,
fez doer a alma, para
depois
mostrar a porta de saída,
e me ver em luta para
ficar, mesmo assim.

jogou
fora minhas defesas,
ridicularizou convicções,
exigiu guerra e suor por ti.
dei
tudo, mas -
reconheço - recebi em troca.

ironicamente, após tanto
trabalho, o abandonei,
tecendo juras de desdém,
maldizendo nossas trepadas,
abrindo as
pernas a todo qualquer,
traindo a mim mesma.

porém, não aguento
mais meu amor
sufocado por ti. daí
não achar metades, pois
chupo
laranjas sempre meias, sendo
que já amei um inteiro

retorno,
porque me ensinaste: não
sou incompleta, pois
sentido é construção e amor
é escolha. volto ao lar, mesmo
temendo que já não
tenha palco para mim.

nunca dispensou noites comigo
- porém sei que um dia o fará.
sinto horror que seja hoje,
mas se for, não
negarei novamente
que, antes de ser triste, sou
atriz

saiba, apesar dos anos
que nos separaram,
não houve inspiração
em que eu não tenha
tentado transformar todo
ar em você, amado,
teatro. 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

...ela mentiu que mentiu...


o médico de sua mãe mentiu quando recomendou aquele anticoncepcional como o melhor.

Sua mãe mentiu quando disse que pesquisou muito até encontrar o melhor médico.

A amiga de sua mãe mentiu quando recomendou aquele médico como o profissional mais competente que conheceu.

O namorado da amiga da sua mãe mentiu quando a incentivou a procurar um tratamento em uma clínica, pois um dia se casariam e teriam filhos.

A ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu – mal - quando afirmou que nunca traiu um companheiro ou companheira.

A mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu ao contar que a filha foi desejada pelos pais.

O marido da mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu ao dizer que amava a esposa.

O pai do marido da mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu ao jurar que nunca quis - nem gostaria - que o filho tivesse sido abortado.

A irmã do pai do marido da mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe não suporta a falta de caráter do irmão e sempre mente e diz que é filha única.

O cunhado da irmã do pai do marido da mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu ao negar que nunca comeu a cunhada.

A mãe do cunhado da irmã do pai do marido da mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu à cartomante ao dizer que buscava amor.

A cartomante da mãe do cunhado da irmã pai do marido da mãe da ex-namorada do namorado da amiga da sua mãe mentiu ao prever um futuro de desgraças, péssimos laços e, muita, muita mentira

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Criatura: a bela na Terra dos Feios


Era uma vez (ou não era) uma criatura, tão criatura, mas tão criatura que não existia como bicho, nem gente. Não era nem planta ou pedra. Vivia na Terra dos Feios, onde era admirada e temida por sua irretocável e incorrigível beleza.

Um dia, exaurida que estava do belo de sua própria pessoa, tal qual os homens das sombras, resolveu andar além do limite da cidade dos feios, esperançosa de não encontrar espelho ou elogio. Finalmente, avistou construções, até que conheceu a Terra dos Belos, onde descobriu-se a mais feia. Com o ego, até então, concreto e duro como rocha, manteve-se por lá, a fim de desafiar todos a vencer sua beleza. Porém, os dias passaram e a segurança que sustentava frente aos ocupantes da cidade vizinha começou a esvaziar em lenta inveja e dor.

Voltou para casa, dizendo que conhecera uma terra infinitamente mais rica, afetuosa, justa e verdadeira do que a Terra dos Feios. Lugar este onde, segundo a criatura, reconheceram ainda mais a beleza da criatura, além de terem-na tratado como a rainha que de fato era. Mas - continuando o relato - decidiu voltar por pena para a Terra dos Feios, pois certamente sofreriam demais com sua ausência. 

A curiosidade tomou conta daquela terra e todos imploravam à Criatura que contasse histórias sobre aquele esplendoroso lugar e, ainda, como havia triunfado sob terra tão bela. A Criatura tinha certeza que logo cessaria o frisson, porém os meses passavam e a agitação só fazia crescer. Ela passou a não suportar ter de sustentar a própria invenção, até que enlouqueceu: passou a falar, falar, falar, falar, falar, falar, falar sobre a Cidade dos Belos, sem qualquer interrupção, sem nem mesmo precisar que a perguntassem.

Suicidou-se no dia nove de maio, quando se deu conta que jamais sairia da Cidade dos Belos, presa que estava pela própria lembrança. Assim, a Criatura foi assassinada pela memória, que nunca cansou de dizer: “Tu és a mais feia que existe. Tens nome de vilã - e fedor de banana podre - não por acaso, mas para cumprir seu destino de criar esgoto, enquanto criamos o oposto. Pobre e iludido daquele te vê bela, ó medíocre Criatura”.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Grito Gravura

Aqueles dois não iriam se conhecer: moravam em cidades diferentes, ela era fiel e ele cético, além do fato de que um curtia baladas demais e o outro de menos. Mas, naquele fatídico ano, vivenciaram dor similar: ele perdeu o pai em setembro, ela enterrou a mãe em outubro. Mesmo assim, não iriam se conhecer: ela era casada e ele era apaixonado pela namorada, além disso, ele tinha fetiche por cabelos curtos, sendo que ela adorava longos fios pelas costas. Para completar, ele trabalhava em transparente solidão, enquanto ela tinha plateias a encarar. Era fato: não iriam se conhecer.

Porém, mesmo com o fato – bem fato - de que não iriam se conhecer, coincidentemente criaram a mesma solução para não enlouquecer: um blog. Cada um tinha a sua técnica específica, mas sem qualquer explicação lógica, diziam as mesmas coisas. Assim, aqueles dois que não iriam se conhecer de forma alguma, se conheceram. Rapidamente, tornaram-se próximos, ainda que em distância na maior parte do tempo. Mas não formavam uma combinação trivial: seus diálogos aconteciam somente através de histórias e formas que encontravam em músicas que compartilhavam.

A troca tornou-se instigante para ambos, mas passaram a querer a presença um do outro. Não para tocar. Não para falar. Apenas para estar. Assim, combinaram que os encontros seriam às segundas-feiras. Para tal, acharam um lugar que tornou-se perfeito: um gramado bem verde, tão verde, igual àqueles dos contos inventados. Levaram caixas de som e as colocaram cuidadosamente separadas, de forma que os dois pudessem deitar entre elas. Tal qual o ritual que muitos têm, como ir ao hospital visitar os parentes moribundos aos domingos – e somente aos domingos - aqueles dois ouviam música juntos, sem nunca ter faltado no dia acordado. Com os olhos fixos para o céu, e as orelhas coladas aos aparelhos, por muitos anos, mantiveram a relação dessa forma, em perfeita sintonia.

Dizem que nunca conversaram absolutamente nada, pois acreditavam que somente se esvaziando em silêncio é que podiam ouvir o outro. Digo, ouvir as músicas, pois sequer conheciam a voz do par. Até então, nunca fora necessário, pois sentiam-se beijados pelos gêneros e batidas, completamente abraçados pelas letras, gritos e instrumentos, chegando até mesmo a gozar pelas dissonâncias, histórias e agudos, pois seus corpos reagiam como se estivessem a transar por horas, enquanto a respiração acelerava graças às juras de amor, provocadas pelos cantos e sussurros.

Não sei se continuaram felizes, se foi exatamente assim que aconteceu, ou se tudo que contei é mera ficção. Propositalmente, não perguntei pelo final, pois nem toda história de amor precisa ser difícil ou trágica, ainda que - para isso - às vezes seja necessário cortar o fio, antes que o novelo se desfaça em disforme e complicado nó.

(Agradeço a querida amiga Larah, pela imagem linda que me trouxe, das caixas de som sendo compartilhadas por duas pessoas, enquanto observam o céu)


segunda-feira, 29 de abril de 2013

Parla!


“Parla!” era a fala que aquele escultor guardava para a escultura que escolheu libertar do mármore. Tornou-se sua doída obsessão, a ponto de transformar todas as suas vivências em meros degraus para sua criação. Fiel à musa que inspirava a si mesma, não admitia qualquer questionamento ou interferência em sua relação. Os primeiros quatro anos foram os mais complicados, pois as pessoas insistiam em querer vê-lo, interná-lo à força, ou tirá-lo do ateliê, mas desistiram pelos indescritíveis acessos de fúria do artista.

Enlouquecia também por ódio às necessidades vitais, que teimavam em pará-lo, como a obrigação de comer e dormir, por exemplo. Um dia, no entanto, simplesmente parou por completo de ingerir alimento ou ceder ao sono. Não era mais necessário, pois a poeira da pedra o alimentava e trabalhava por todas as horas, pois também era sonâmbulo. Somente a necessidade de beber água se manteve, mas ele se satisfazia com a que usava para umedecer a escultura escondida dentro do mármore.

Quando completaram-se exatos doze anos, finalmente pôde enxergar com alguma nitidez a musa/obra que por tanto tempo fugira dele. As lágrimas do artista escorriam sem qualquer controle, mas não eram alegres ou tristes: eram desesperadas, pois temia perder sua amada, agora que estava liberta. Mas ao tomar fôlego para convidá-la a dizer o que por tantos anos calou, percebeu que ainda não era a bela criatura - que de fato era – pois o ombro esquerdo da escultura ainda não era a que lhe pertencia.

Com infinito amor – e aqui me refiro a amor de verdade, não esse que se vê em filmes, histórias ou na vida – tocava a obra a fim de fazer com que ela pudesse “tornar-se o que era”. Porém, em um milésimo de segundo, tão invisível quanto a dor, viu a metade de sua bela ruindo em suas próprias mãos, sobrando-lhe apenas o busto. Enlouquecido, saiu andando pelas estradas sem nunca mais parar, sempre carregando consigo as partes quebradas. Para trás, ficou o busto, esquecido e abandonado para sempre, pois ele nunca mais voltou e ninguém ousava se aproximar daquele lugar.

Mas a verdade é que o escultor nunca soube que a verdadeira musa/obra era exatamente aquela e que chegou a tê-la em suas próprias mãos: sua amada sempre fora apenas parte e não todo o dorso que ele pensava. Morreu como louco e indigente, sem nunca ter ficado sabendo que seu grande amor nunca deixou de esperá-lo, liberta que fora por ele e pronta a falar.

(História dedicada ao amigo Marco Paulo, pela preciosa e querida inspiração) 


segunda-feira, 22 de abril de 2013

Jardim Japonês


Enganava-se com um jardim japonês,
Mas era simplesmente brinquedo.
Fingimento de solidez: tentativa
Idiota por querer zen pelos dedos.

Cansada por ser como siamesa da
Violência, parou de forte inspirar.
Trocou íntimo rubro por branquear
Areia, tornou-se apenas para arar.

Mas devia a todos, devia ter, devia
Ser crédito, impondo participação,
Naquela tortuosa e estreita travessia:
Esgoelavas, avisavas, exigia menção.

Para desespero, a plana superfície
Tornou-se incômodo e real espelho,
Ressaltando a nojenta imundície,
Todo o escondido, o que jaz veio.