segunda-feira, 29 de abril de 2013

Parla!


“Parla!” era a fala que aquele escultor guardava para a escultura que escolheu libertar do mármore. Tornou-se sua doída obsessão, a ponto de transformar todas as suas vivências em meros degraus para sua criação. Fiel à musa que inspirava a si mesma, não admitia qualquer questionamento ou interferência em sua relação. Os primeiros quatro anos foram os mais complicados, pois as pessoas insistiam em querer vê-lo, interná-lo à força, ou tirá-lo do ateliê, mas desistiram pelos indescritíveis acessos de fúria do artista.

Enlouquecia também por ódio às necessidades vitais, que teimavam em pará-lo, como a obrigação de comer e dormir, por exemplo. Um dia, no entanto, simplesmente parou por completo de ingerir alimento ou ceder ao sono. Não era mais necessário, pois a poeira da pedra o alimentava e trabalhava por todas as horas, pois também era sonâmbulo. Somente a necessidade de beber água se manteve, mas ele se satisfazia com a que usava para umedecer a escultura escondida dentro do mármore.

Quando completaram-se exatos doze anos, finalmente pôde enxergar com alguma nitidez a musa/obra que por tanto tempo fugira dele. As lágrimas do artista escorriam sem qualquer controle, mas não eram alegres ou tristes: eram desesperadas, pois temia perder sua amada, agora que estava liberta. Mas ao tomar fôlego para convidá-la a dizer o que por tantos anos calou, percebeu que ainda não era a bela criatura - que de fato era – pois o ombro esquerdo da escultura ainda não era a que lhe pertencia.

Com infinito amor – e aqui me refiro a amor de verdade, não esse que se vê em filmes, histórias ou na vida – tocava a obra a fim de fazer com que ela pudesse “tornar-se o que era”. Porém, em um milésimo de segundo, tão invisível quanto a dor, viu a metade de sua bela ruindo em suas próprias mãos, sobrando-lhe apenas o busto. Enlouquecido, saiu andando pelas estradas sem nunca mais parar, sempre carregando consigo as partes quebradas. Para trás, ficou o busto, esquecido e abandonado para sempre, pois ele nunca mais voltou e ninguém ousava se aproximar daquele lugar.

Mas a verdade é que o escultor nunca soube que a verdadeira musa/obra era exatamente aquela e que chegou a tê-la em suas próprias mãos: sua amada sempre fora apenas parte e não todo o dorso que ele pensava. Morreu como louco e indigente, sem nunca ter ficado sabendo que seu grande amor nunca deixou de esperá-lo, liberta que fora por ele e pronta a falar.

(História dedicada ao amigo Marco Paulo, pela preciosa e querida inspiração) 


Um comentário:

  1. Infinita é o prazer de imaginar que ela existe. Minha inspiração me faz criar todos os seus contornos. Minha imaginação a compõe, a revela.



    Até o dia da despedida.



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